Desafios para o sistema internacional de propriedade intelectual: a neutralidade climática como novo standard jurídico

A crise climática global tem reformulado de forma profunda a estrutura normativa internacional. De modo progressivo, a neutralidade climática deixa de ser apenas uma meta política e assume contornos de um novo standard jurídico emergente. Esse conceito começa a orientar políticas públicas, decisões judiciais e compromissos internacionais com força vinculante, impactando diversas áreas do direito. Pode-se dizer que uma das áreas mais tensionadas por essa nova lógica é o sistema internacional de Propriedade Intelectual, que até então protegia inovações sem uma vinculação direta com objetivos ambientais, especialmente no que se refere ao acesso e à disseminação das tecnologias ambientais.

O debate se impõe a partir do momento que existe uma tensão entre inovação tecnológica e justiça climática. De um lado, o regime da PI busca proteger e incentivar o desenvolvimento de novas tecnologias, inclusive as chamadas green patents, voltadas para a mitigação e adaptação às mudanças climáticas. De outro, a urgência climática demanda uma difusão rápida e equitativa dessas tecnologias, principalmente para os países em desenvolvimento. Surge então o questionamento: o atual modelo de propriedade intelectual é compatível com o imperativo jurídico da neutralidade climática?

Desde a assinatura, em 1992, da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima, a transferência de tecnologia tem sido considerada um dos pilares da cooperação climática internacional. O Acordo de Paris reforçou esse compromisso no seu artigo 10, que reconhece a importância da inovação tecnológica e estabelece mecanismos para facilitar o desenvolvimento e a difusão de tecnologias ambientalmente sustentáveis.

Mais recentemente, tem ganhado força na doutrina internacional a ideia de que esse dever de transferência não pode mais ser visto apenas como uma aspiração política, mas como uma obrigação jurídica emergente. Esse dever estaria ancorado em princípios consolidados do direito internacional ambiental, como o das “responsabilidades comuns, porém diferenciadas”, a equidade intergeracional e a solidariedade climática. Embora a natureza jurídica ainda seja debatida — soft law ou um dever erga omnes? — o fato é que a expectativa de que os países desenvolvidos adotem medidas concretas para viabilizar o acesso amplo e não discriminatório às tecnologias verdes cresce de modo exponencial.

A propriedade intelectual exerce um papel ambíguo quando refletimos se as Green Patents são um incentivo ou um obstáculo. Por um lado, o sistema de patentes é crucial para estimular investimentos em pesquisa e desenvolvimento de tecnologias limpas. Iniciativas como o Green Patent Fast Track, em países como Estados Unidos, Coreia do Sul e Japão, exemplificam esse esforço: patentes relacionadas a tecnologias verdes são analisadas mais rapidamente, incentivando a inovação ambiental.

Nessa perspectiva, a Convenção da União para a Proteção das Obtenções Vegetais desempenha um papel crucial no sistema internacional de Propriedade Intelectual, assegurando a proteção dos direitos dos criadores de novas variedades vegetais e incentivando o desenvolvimento de cultivos mais produtivos e adaptáveis. Ao mesmo tempo, é importante que as regulamentações e a implementação da UPOV considerem o impacto social e ambiental, promovendo um equilíbrio entre a proteção dos direitos dos obtentores e o acesso e uso sustentável da biodiversidade agrícola.

No entanto, há críticas contundentes quanto ao efeito prático dessas patentes sobre a difusão tecnológica, pois muitos países em desenvolvimento enfrentam dificuldades em acessar essas inovações devido a altos custos de licenciamento. Em alguns casos, a proteção patentária pode representar uma barreira direta à implementação de soluções tecnológicas essenciais para alcançar metas climáticas. Já se vê que países como Índia, Brasil e África do Sul vêm buscando mecanismos de flexibilização, como licenciamento compulsório ambiental, inspirados em práticas já reconhecidas no campo da saúde pública.

Diante desse cenário, o desafio é encontrar formas de compatibilizar o regime internacional de propriedade intelectual com as exigências do novo standard jurídico da neutralidade climática. Isso exige, em primeiro lugar, uma reinterpretação dos tratados internacionais à luz dos compromissos climáticos. Em segundo lugar, impõe a criação de instrumentos multilaterais mais robustos que permitam o compartilhamento de tecnologias verdes em bases justas, como bancos de patentes abertas, pools de licenciamento voluntário e mecanismos financeiros que compensem a abertura do conhecimento.

Organismos internacionais como a Organização Mundial da Propriedade Intelectual, a Organização Mundial do Comércio e o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente têm papel central no processo. Também acordos regionais podem ser espaços importantes para a criação de cláusulas de transferência tecnológica ambiental, promovendo maior equilíbrio entre proteção e acesso.

A integração entre a Propriedade Intelectual e o Marco da Diversidade Biológica é uma questão complexa e multifacetada, que envolve o equilíbrio entre inovação científica, justiça social e sustentabilidade ambiental. A proteção da biodiversidade deve ser feita de forma a reconhecer e remunerar as comunidades que a mantém, ao mesmo tempo em que se fomenta a inovação responsável. O desafio está em criar sistemas legais e de governança que assegurem um uso ético e sustentável dos recursos naturais e conhecimentos tradicionais, respeitando os direitos das comunidades e a equidade no acesso aos benefícios.

O avanço da neutralidade climática como princípio jurídico global pressiona o sistema de propriedade intelectual a repensar seus fundamentos. Se, por um lado, é essencial manter o estímulo à inovação, por outro, torna-se inaceitável que a lógica de exclusividade represente um entrave à ação climática eficaz. A construção de um novo equilíbrio mais solidário, flexível e orientado pelo interesse público global é não apenas desejável, mas necessária para enfrentar o maior desafio do nosso tempo.